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sexta-feira, 6 de julho de 2012

Consumismo nosso de cada dia

IMPERIALISMO E CRISE SOCIOAMBIENTAL
Maurício Broinizi Pereira
professor de história contemporânea e coordenador do programa de pós-graduação em história da puc-sp

Os principais acontecimentos políticos do final do século passado e a reificação do processo de aceleração das transformações tecnológicas em curso, entre outras questões, criaram a ilusão da inexorabilidade e imperiosidade do capitalismo como o único sistema econômico-social viável para a humanidade. A globalização e o neoliberalismo, instrumentos do processo de mundialização do capital, foram alçados à condição de únicas receitas eficazes para alavancar o crescimento econômico mundial e, em particular, o dos países enredados nas mazelas da pobreza.
A movimentação de capital, sem dúvida, foi intensa: mega transações, megafusões, mega especulações, incorporações avassaladoras de significativas porções do Leste Europeu e da China no percurso dos investimentos e da reprodução e acumulação de capital, além da intensificação do desenvolvimento capitalista em grande parte do Sudeste Asiático. Enquanto isso, após a recessão dos anos de 1991 a 1993, os Estados Unidos experimentaram, até 2000, um enorme boom econômico, recuperando níveis altíssimos de investimento, emprego e produtividade — e também de especulação na chamada Nova Economia, como retratavam os índices Nasdaq de ações de empresas de tecnologia —, colhendo uma porção significativa dos frutos da ampla abertura econômica que marcou a década passada.
O empenho da Era Clinton por manter o boom econômico era tamanho que, além de manter todas as pressões sistêmicas para que grande parte dos países aprofundassem a política de open door, o presidente assumia pessoalmente o papel de lobista mundial de grandes projetos e empreendimentos de interesse de empresas norte-americanas, chegando a tomar para si, por diversas vezes, a patética missão de tentar convencer o governo e o povo japonês de que eles deveriam consumir bem mais e poupar muito menos, dado o reconhecido alto nível de poupança per capita existente no Japão e o moderado padrão de consumo de grande parte de sua população.
A receita dos anos de 1990, ainda que bem simplificada, pode ser resumida em desregulamentação, portas abertas, livre mercado, gigantescas e super produtivas empresas, consumo, muito consumo, acumulação, ampla liberdade de aplicações e especulações globalizadas, mais alguma acumulação etc., com, obviamente, a devida proteção ao poder político e militar das potências gerentes do sistema, particularmente o da superpotência imperial norte-americana, incluindo todo o poder simbólico que ela representa para o mundo como sociedade opulenta, de consumo abundante e vencedora.
O império do consumo
É importante refletir sobre o papel simbólico que os Estados Unidos representam, principalmente porque o estilo de vida norte-americano, os seus produtos, valores e promessas, amplamente difundidos pelo poder de sua indústria cultural e de suas propagandas, veiculadas intensamente por todas as novas tecnologias de comunicação, passaram a habitar, na última década, o imaginário de mais alguns bilhões de pessoas expostas ao processo de mundialização do capitalismo. É claro que tal processo não começou nos anos de 1990, mas o fim da União Soviética, a globalização e a consistente transformação capitalista das economias chinesa e indiana multiplicaram as condições de reprodução da sociedade pautada no consumismo.
Pelo menos desde os anos de 1940, a sociedade de consumo de massa passou a ser não só o ideal mas também a realidade de grande parte dos norte-americanos.
“No começo da era que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, um consultor de vendas americano chamado Victor Lebow declarou:
´A nossa economia enormemente produtiva... requer que nós façamos do consumo o nosso modo de vida, que nós convertamos a compra e o uso de mercadorias em rituais... que nós busquemos a nossa satisfação espiritual ou do nosso ego no consumo... nós precisamos de coisas consumidas, destruídas, gastas, substituídas e descartadas numa taxa continuamente crescente´.”1

E nada foi tão plenamente realizado na sociedade norte-americana quanto esta inflexão de sessenta anos atrás.
Vale a pena refletir sobre alguns efeitos globais deste estilo de vida e padrão de consumo. Contando, em média, com um automóvel para cada dois habitantes, ou seja, com uma frota de aproximadamente 150 milhões de carros, os EUA – que têm menos de 5% da população mundial – consomem 26% do petróleo, 25% do carvão e 27% do gás natural do planeta, segundo dados divulgados em 2004 pelo Worldwatch Institute, uma fundação com trinta anos de experiência em pesquisa e processamento de dados sobre o “estado do planeta”. Em consequência, os EUA são responsáveis por cerca de 27% das emissões globais de CO2. O dióxido de carbono, o qual é o resultado da queima daqueles combustíveis fósseis, é o principal poluente da atmosfera e o grande responsável pelo processo de aquecimento global em curso.
Por outro lado, o governo Bush vem, sistematicamente, negando-se a reconhecer qualquer evidência de mudança climática, recusando-se a assinar o protocolo de Kioto, ainda que este seja uma tímida iniciativa para a redução da emissão de poluentes. Para um presidente com estreitas ligações com o complexo industrial militar e com o setor petrolífero norte-americanos, deve ser difícil aceitar que conste da sua agenda qualquer preocupação com os efeitos perversos, ainda que sejam fatais, da “civilização do bem”. Não bastassem seus comprometimentos evidentes, Bush foi acusado por sessenta cientistas norte-americanos, entre os quais doze são prêmios Nobel, de distorcer pesquisas científicas, incluindo as das mudanças climáticas, segundo seus interesses políticos, assim como distorceu os relatórios sobre o Iraque para poder fazer a guerra.
Este é apenas um exemplo das consequências ambientais globais de uma sociedade de consumo de massa que representa 5% da população do planeta. No entanto, esta sociedade tornou-se referência para outras tantas, objeto do desejo de milhões e milhões de consumidores potenciais, principalmente de economias emergentes que apenas começam a reproduzir o estilo de vida norte-americano. O exemplo mais significativo vem da China, onde apenas 20% de sua população começa a figurar com alto poder de consumo, porcentagem que equivale a toda a população consumidora norte-americana. Segundo dados que vem sendo divulgados pela imprensa, os chineses vem incorporando 11 mil novos carros por dia nas ruas de suas cidades, totalizando aproximadamente 15 milhões de automóveis particulares.
Esta nova situação levou o continente asiático à condição de maior produtor mundial de veículos, onde a China é o mercado que mais cresce. Se estas tendências forem mantidas, em poucos anos teremos na China uma frota de automóveis próxima à já existente nos EUA. Pode-se aplicar esta mesma linha de raciocínio para países como a Índia, Indonésia, Rússia e Brasil, onde mais da metade de suas grandes populações ainda não ingressaram na condição de consumidores de automóveis. No Brasil, a tendência é explícita, pois a industria automobilística, tanto para exportação quanto para consumo interno, parece continuar sendo considerada um dos principais agentes responsáveis por incrementar o crescimento econômico, dados os contínuos incentivos do governo Lula para o setor.
Em face da estrutura produtiva em que parte significativa do sistema está assentado, do conjunto de interesses que giram em torno da indústria automobilística e petrolífera, e da ideologia dominante e geradora de desejos de consumo, parece que o eco cínico em torno de Bush continuará tendo muitos adeptos, sustentado pela racionalidade/crença ocidental de que a tecnologia trará soluções para tudo, talvez até para a inexistência de recursos naturais que possam sustentar o atual paradigma produtivista/consumista. Tal paradigma continua, ainda que esteja em ampliação para novas áreas do planeta, realizando a circulação de mercadorias para muito poucos, já que mais de dois terços da humanidade continua sobrevivendo entre condições de miséria e pobreza. Concluída mais de uma década de globalização e neoliberalismo, uma enxurrada de dados divulgados recentemente por organizações multilaterais do próprio sistema, tais como ONU, OIT, Banco Mundial e o próprio FMI, apontam para a insustentabilidade socioeconômica e ética deste processo, que gerou mais concentração de renda entre os países ricos e para as classes mais abastadas em todo o planeta, aprofundando a desigualdade social e o desastre ambiental.

Nota
1 Durning, Alan, in Qualidade de Vida, 1991. Worldwatch Institute. São Paulo, Globo, 1991, p.205.
Texto retirado do sítio da Revista PUCVIVA
http://www.apropucsp.org.br/revista/r20_r04.htm

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