Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura
Ribamar
Bessa Freire, via Portal
Terra
O
tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugênio Sales,
ocorrida na segunda-feira, dia 9, com direito à pomba branca no
velório, me fez lembrar o filme alemão Uma
cidade sem passado,
de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos
típicos de como o poder manipula as versões sobre a história,
promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente
novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um
instrumento de controle e coerção.
Comecemos
pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o
Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação
escolar, de âmbito nacional, cujo tema é “Minha cidade natal na
época do 3º Reich”. Milhares de estudantes se inscrevem, entre
eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história
de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme –,
considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas
a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória
– o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o
jornal Pfilzinger
Morgen –
fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém
quer que uma “judia e comunista” futuque o passado. Sônia,
porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais.
Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram
ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas,
descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A
jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se
recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça
à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem
vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos
do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha
caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha –
resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de
formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns
anos.
Hostilizada
pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra
com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o
processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no
meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da
cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da
resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração.
Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a
cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar
essa mancha vergonhosa da memória, for jando um passado que nunca
existiu.
Os
documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na
época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda
vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos
registros. No entanto, o mais doloroso era que aqueles que, ontem,
haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como
heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio!
Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os
documentos.
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